Traduzido do original de Émilie Massemin (Reporterre)
Tempo de leitura: 14 minutos
Falta de acesso à água potável, saúde da população, migração … No documentário “Marcher sur l’eau”, a diretora e atriz Aïssa Maïga explora a questão das mudanças climáticas e o problema do acesso à água, no Níger. Mais uma luta para quem já travou muitas outras.
Marcher sur l’eau, de Aïssa Maïga – “No norte do Níger, a aldeia de Tatiste, vítima do aquecimento global, luta para ter acesso à água. Todos os dias, Houlaye, de 14 anos, assim como outros jovens, caminha quilômetros para buscar água, essencial para a vida na aldeia. Essa tarefa diária impede-os, entre outras coisas, de ir à escola. A falta de água também leva os adultos a deixarem suas famílias, todos os anos, para buscar os recursos necessários para a sua sobrevivência, além das fronteiras. No entanto, esta região possui, em seu subsolo, um lago aqüífero de vários milhares de quilômetros quadrados. Bastaria perfurar um poço para extrair e levar a tão cobiçada água ao centro da aldeia e, assim, dar a todos uma vida melhor. “
Este documentário faz parte da seção efêmera Le cinéma pour le climat do Festival de Cannes 2021. O filme estreia nos cinemas, no dia 10 de novembro de 2021.
Reporterre — Como surgiu a ideia de fazer esse documentário?
Aïssa Maïga – A ideia original é do jornalista Guy Lagache. Quando ele teve que abandonar este projeto, o produtor Yves Darondeau me contatou. Eu o adotei e projetei nele as memórias que tenho da região de onde venho, no Mali, que é muito árida. Eu quis mostrar, num filme imersivo, o dia a dia das populações que enfrentam, diariamente, a escassez de água.
O que mais a impressionou, durante as filmagens?
Em duas gerações, a situação se deteriorou dramaticamente. O chefe da aldeia, que já é bem idoso, viveu numa época em que as chuvas eram abundantes, durante vários meses do ano, e as lagoas e os poços ficavam cheios, a vegetação era exuberante e abrigava inúmeras espécies de animais. O modo de vida nômade era possível e estava preservado. Havia um grande número de pastagens, que eram razoavelmente utilizáveis para que os nômades migrassem para essas áreas e para que os cultivadores sedentários também tivessem suas terras; a convivência entre eles estava indo bem. Hoje esse equilíbrio foi totalmente alterado.
Em alguns lugares, as pessoas não têm acesso a um poço situado a uma distância razoável. Assim, elas são obrigadas a cavar a terra com as próprias mãos, na esperança de encontrar uma água insalubre. A saúde de recém-nascidos, das crianças e das mães corre risco. As pessoas estão sendo levadas a partir, cada vez mais longe, até mesmo migrar para outras regiões da África ou para a Europa. Esta situação é também uma porta aberta para o terrorismo. No mínimo, para o banditismo.
No final do documentário, um poço é perfurado e, com isso, os habitantes de Tatiste passam a ter acesso a uma água pura e abundante. Os espectadores poderão ter a impressão que a questão das mudanças climáticas e da água está resolvida. É este realmente o caso?
A perfuração de um poço possibilita melhorias, mas não resolve tudo como num passe de mágica. Primeiro, pode melhorar a saúde dos moradores, que não são mais obrigados a beber nem a cozinhar com uma água insalubre.
Além disso, as crianças tornam-se mais assíduas na escola. Antes, as crianças tinham que ir ao poço buscar água. Em algumas ocasiões, mais de uma vez ao dia. As suas jornadas letivas eram constantemente interrompidas. Mesmo que todas as crianças de Tatiste fossem à escola, na 1ª série, a maioria desistiria, porque é impossível manter esse ritmo. Agora, pode ser que muitos consigam frequentar a escola até depois da quinta série.
Enfim, quando o poço é administrado pela comunidade – não sei se foi essa a decisão final quanto ao de Tatiste -, ele traz dinheiro e possibilita o desenvolvimento de projetos como a compra de gado, de cereais, de capacitação, etc. Os principais pontos de água, que reúnem as populações das várias aldeias vizinhas, podem fomentar a criação de um comércio.
Porém, para serem virtuosos, esses poços de água devem dar origem a projetos ambientais, principalmente os agroflorestais. Este é um dos grandes projetos da associação Amman Imman, que perfurou o poço. Isso tornaria possível reflorestar uma área, em poucos anos, e, assim, reiniciar o ciclo da água, favorecendo as chuvas. Mas não tive a oportunidade de abordar melhor essa questão. Primeiramente, porque eu teria que voltar para Tatiste, uma sexta e última vez, e isso não aconteceu. Mas também porque eu queria me concentrar nos habitantes para fazer um documentário vivido por seus próprios moradores. Assim, evitaria aquele discurso em off, distante, que explica temas técnicos.
Você tem uma ligação especial com Houlaye, uma adolescente de 14 anos que mora na aldeia. As Nações Unidas alertam, seguidamente, que as mulheres estão na linha de frente face às mudanças climáticas. Foi o que você constatou, em Tatiste?
Sim. Há muito tempo, estou ciente dessa questão, pois eu mesma sou da África Ocidental e viajei muitos nesses países. Escolhi essa aldeia justamente para evidenciar essa condição feminina. Na estrutura familiar peule Wodaabe Fulani, as mulheres têm uma grande responsabilidade financeira. Eles vão regularmente à cidade, começando por Lagos, na Nigéria, para vender seus serviços de cabeleireira, de faxineira limpeza ou os conhecimentos da farmacopeia tradicional. Quando estão na aldeia, são as responsáveis pela casa.
Elas falam com muita facilidade sobre esses assuntos, pois fazem parte do cotidiano delas. E ficam especialmente preocupadas com os filhos, ainda mais quando elas viajam. Um dia, a mãe de Houlaye me contou que o que mais lhe doía quando ela estava na cidade, era beber sem saber se os filhos dela tinham água para beber. Eu não consegui incluir essa entrevista no filme. Mas essas palavras contêm uma verdade gritante, esmagadora e cruel.
Antes de fazer este documentário sobre as mudanças climáticas e o problema do acesso à água, no Níger, você se comprometeu a melhorar a visibilidade das atrizes negras. Assim, você fez um apelo notável https://www.huffingtonpost.fr/entry/aissa-maiga-plaidoyer-cesar-2020-diversite_fr_5e598d41c5b6450a30be6f72 para uma maior diversidade no cinema francês, durante a cerimônia dos César, em 2020 …
Meu sonho era ser atriz, quando era bem jovem. Mas esse sonho foi sendo manchado, rapidamente, pela forma como me viam como negra. Certos papéis eram repetitivos: a “mama” negra, a prostituta, a moça vítima da cultura atrasada da família, a enfermeira. Não tenho nada contra isso, mas não existe só isso. E não é tão estereotipado ou caricatural. Essa questão nunca foi tabu para mim: durante 20 anos, falei sobre o que eu vivia nas entrevistas, durante a promoção dos filmes … Mas percebi que nada mudava. E também vi que, enquanto eu envelhecia, as jovens atrizes negras enfrentavam os mesmos problemas que eu havia enfrentado, 20 anos antes: escassez de papéis, de oportunidades, de testes de elenco, a exposição excessiva a papéis estereotipados e degradantes.
Aí, aconteceram duas déclics: primeiro, o movimento #MeToo [1], em 2017, que mostrou que a indústria cinematográfica poderia ser o epicentro a partir do qual as atrizes, manifestando-se, possibilitariam que as outras mulheres também pudessem falar; depois, o lançamento, em 2018, do filme americano de super-heróis, Black Panther. O filme, com elenco quase todo negro, foi uma das maiores bilheterias da história da Marvel. E uma mudança de paradigma para mim, que sempre havia pensado que fazer um filme com um super-herói negro era impossível, que não venderia internacionalmente, que o público não estava pronto, etc. Também me fez perceber que várias mulheres negras de perfis bem diferentes poderiam aparecer juntas na tela.
Eu queria que tomássemos a palavra, coletivamente. Éramos 16 atrizes negras e mestiças, de origens sociais, religiosas e culturais muito diferentes. E cada uma de nós contou sua história, na primeira pessoa. Elas foram reunidas em uma coleção, Noire n’est pas mon métier. A receptividade foi muito favorável e até saiu em versão de bolso.
Para mim, era óbvio que eu continuaria me aprofundando neste tema. É tão importante para a sociedade na qual vivemos que todos estejam representados e tenham acesso a todas as oportunidades! Foi assim que surgiu o projeto do documentário Regard noir https://www.canalplus.com/decouverte/regard-noir/h/15770381_50001. Eu codirigi com a diretora e produtora corsa, Isabelle Simeoni. Também foi interessante codirigi-lo com alguém cuja luta não é necessariamente esta, embora a noção de ter um aliado seja muito importante para mim. Ele explora a questão da representação das mulheres negras nas telas de três países: França, Estados Unidos e Brasil. Os três têm realidades diferentes, mas compartilham a base comum da colonização e do tráfico de escravos. Eu queria que os espectadores pudessem perceber as consequências econômicas, sociais e psicológicas para os negros dessa imagem que a sociedade reflete para eles. Mas, para mim, poderia ser feito o mesmo filme sobre a questão da deficiência, do gênero ou mesmo da migração, pois são temas que dizem respeito a toda a sociedade e questionam valores fundamentais.
Você também participou de mobilizações organizadas pela família Traoré https://reporterre.net/Assa-Traore-Face-aux-violences-policieres-la-France-doit-se-lever-et-dire-non e o Comitê Adama https://reporterre.net/Marche-pour-Adama-Traore-Dans-les-quartiers-populaires-l-ecologie-s-enrichit contra a violência policial em bairros populares …
Eu sou mãe de família. Criei dois meninos. Ter dois adolescentes, em Paris, foi uma verdadeira jornada. Quando meus filhos começaram a sair, à noite, fiquei aflita. Eu queria que voltassem cedo, tinha medo que fossem atropelados … Algo que todos os pais podem sentir. Mas com uma dimensão extra: medo de que os meus dois filhos, que têm a pele negra, passeassem de moletom com capuz, rindo com um grupinho de amigos, e chamassem a atenção de policiais mal intencionados. Sei que muitos pais de meninos árabes ou negros, na França, sentem esse medo dos desvios da polícia. E não é fruto da imaginação: os dados do Défenseur des droits [2] reafirmam esse sentimento.
A Assa Traoré veio nos ver, em 2018, durante uma sessão de autógrafos do livro Noire n’est pas mon métier. Ela queria que a ajudássemos a divulgar sua luta. Para mim, era óbvio que eu devia ajudá-la. Em primeiro lugar, por empatia, pois, diante de mim, estava uma jovem despedaçada pela morte do irmão caçula, após ter sido abordado pela polícia em condições não esclarecidas. Em segundo lugar, politicamente, porque esse excesso de violência policial é uma questão política. Portanto, era óbvio para mim, mãe, cidadã e atriz, dar o meu apoio a essa causa tão importante e urgente a ser resolvida.
Com o Marcher sur l’eau, você agora assume um compromisso com o clima e com o acesso à água. Você faz uma conexão entre todas essas lutas?
Acho que há uma grande coerência entre elas. Trata-se sempre de respeito pelo Outro com um O maiúsculo, seja mulher, criança, migrante ou até o ser vivo, em si.
Trata-se também do resgate da minha herança paterna. Meu pai era jornalista. Ele trabalhou muito ao lado de Thomas Sankara [3] e participou da primeira revolução burquinense, até sua morte, em 1984. Ele fez parte da geração de africanos e africanas feministas, de ecologistas e de anti-imperialistas. Para mim, não se trata apenas de homenageá-los, mas de dar vida a esse legado.
Enfim, é muito difícil para mim viver em um mundo onde uma vida africana vale menos do que uma vida ocidental. Sei do que estou falando, pois faço parte desses dois universos. Um dia, em abril de 2019, quando voltávamos de Tatiste, após as filmagens, nos conectamos à Internet em nossos smartphones e soubemos que a catedral de Notre-Dame de Paris havia incendiado, poucos dias antes. Foi chocante, algo impressionante. Também soubemos da enorme quantidade de promessas de doações, que ultrapassava em muito o custo da reconstrução. E nós havíamos acabado de sair de uma aldeia devastada pela sede! Nosso mundo ocidental está muito bem informado sobre as questões ambientais, mas acha que ajudar as populações com dificuldade de acesso à água é menos importante que a reconstrução de um edifício, reconhecidamente de grande valor espiritual, histórico, arquitetônico e artístico. Esse « dois pesos, duas medidas » é insuportável.
Para mim, este filme é uma forma de acelerar o meu engajamento nessas questões, que não eram minha prioridade, até agora. Devo ter feito os dois filmes – Regard Noir e Marcher sur l’eau – ao mesmo tempo. No início, achei que seria impossível. Mas, no fim, eu consegui e percebi que, no fundo, era o mesmo assunto: o respeito pelo Outro.
O meu próximo documentário será sobre o meu pai. Ainda não sei que formato terá. Só sei que, depois, partirei para a ficção. Não sei se farei apenas filmes engajados, mas com certeza, existe uma busca de sentido em todo o meu trabalho de atriz e diretora.
Traduzido do original de Émilie Massemin pour Reporterre
Foto de capa Georges Biard em Wikimedia Commons
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