Os vários benefícios de reciclar o óleo de fritura

Além de ser uma matéria-prima mais barata, permite gerar mais renda e tem um ganho ambiental, afirma pesquisadora da Embrapa que trabalha com biocombustíveis.

No Brasil, reciclar o óleo de cozinha usado não é novidade. Há quase duas décadas, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel inclui o óleo de cozinha usado para complementar as matérias-primas usadas na fabricação do biocombustível. “Uma participação com potencial para ser aumentada”, afirma Itânia Pinheiro Soares. Itânia é pesquisadora da Embrapa Agroenergia e participou do projeto Biofrito, que previa a utilização do óleo usado de fritura para a fabricação do biodiesel. Ela lamenta que o projeto tenha sido “descontinuado, por uma série de questões”, mas tem esperanças de que ele, um dia, seja reativado.

Em entrevista exclusiva ao Fact Mundi, Itânia explicou como funciona o processo químico para transformar o óleo de cozinha em biocombustível. Claro, sem muitos detalhes técnicos, os quais só os especialistas compreendem. Ela aproveitou também para oferecer sugestões para que a sociedade e o poder público se comprometam mais com o descarte adequado do óleo usado e assumam uma atitude mais consciente diante dos recursos naturais, que não são infinitos. Um olhar de quem está acompanhando a situação de perto.

“Se o óleo (de fritura usado) foi filtrado e utilizado na produção de biodiesel, e o biodiesel atender aos parâmetros exigidos pela ANP, poderá ser utilizado em mistura com o diesel, em qualquer motor do ciclo diesel. O problema é a utilização direta do óleo. “

Fact Mundi: Olá, Itânia, que tal a gente começar com uma pergunta que nos fizeram, outro dia? “É possível colocar o óleo de fritura usado diretamente no tanque do meu carro?”

Itânia: (faz uma pausa e ri) Claro que não! Mas tem gente que faz isso. Já ouvi gente dizer: “Na minha fazenda, no meu trator, eu coloco direto”. Se a máquina é antiga, às vezes, ele utiliza mesmo. Mas o problema de se utilizar diretamente esse óleo nos motores, principalmente nos motores mais novos, é que as máquinas são cada vez mais ajustadas à tecnologia para emitir menores níveis de poluentes. Então, quando você usa um óleo de cozinha, por exemplo, ou mesmo um óleo virgem, a combustão desse óleo não vai ser tão eficiente devido aos ajustes que podem oferecer uma taxa de compressão diferente. Já com relação à legislação, no Brasil, não existe uma lei que me impeça de usar o óleo usado de fritura no meu carro. Eu não vou ser multada. A regulamentação e a fiscalização existem para os combustíveis que são comercializados no país, da produção aos postos de revenda. Mas se pensarmos na vida do motor, é preciso haver um certo cuidado. Em nível particular, a pessoa pode usar o que bem entender, até estrume, se quiser (risos). O problema vai ser dela, pois isso vai destruir o carro e ainda poderá contribuir para mais emissão de poluentes.

Fact Mundi: Você pode explicar como é a utilização do óleo usado de fritura para a fabricação do biocombustível?

Itânia: Vou tentar simplificar ao máximo. O que acontece é que o óleo tem que passar por uma reação para ser usado como combustível, tanto o óleo usado de fritura quanto o óleo virgem. Isso se chama de “processo de transesterificação”: ele vai gerar os ésteres, que são o biodiesel. Se eu pegar o óleo que não passou por nenhuma reação, ele tem uma molécula que é mais densa, o que torna o óleo mais viscoso e não apropriado para esse motor. Ele vai conseguir uma combustão? Vai, mas não da maneira como gostaríamos. O óleo de fritura usado tem uma particularidade: durante o processo de fritura, ele já começou a sofrer uma pequena degradação e a formar ácidos graxos livres, o que acaba elevando a acidez do óleo. Na maioria das vezes, usar esse óleo para produzir o biodiesel não chega a ser um problema, porque esse óleo vai ser misturado a outros óleos virgens. A não ser quando esses óleos chegam à usina com baixa qualidade, alta umidade e resíduos diversos.  Dependendo da origem, às vezes, junto com esse óleo de cozinha vêm restos de alimentos e outras coisas que dificultam a sua utilização. Se tiver boa qualidade, se não tiver muito resíduo, ele é filtrado e passa por um processo de purificação e é misturado ao óleo virgem.

Fact Mundi: Você falou que os motores não estão preparados para receber esse óleo usado de fritura, mesmo tratado e filtrado. Mas eles estão perfeitamente ajustados ao biodiesel feito a partir do óleo usado. Pode explicar?

Itânia: Então, se o óleo foi filtrado e utilizado na produção de biodiesel, e o biodiesel atender aos parâmetros exigidos pela ANP (Agência Nacional do Petróleo), poderá ser utilizado em mistura com o diesel, em qualquer motor do ciclo diesel. O problema é a utilização direta do óleo. Funcionar, ele funciona. Haverá menos problemas nos motores mais antigos, que não têm esse ajuste das tecnologias novas. Como eu disse, os motores são pensados, cada vez mais, para emitir menos poluente e consumir menos combustível.

“As pessoas, às vezes, pensam que um biocombustível não vai emitir CO2 e outros gases poluentes. Não existe mágica. A questão é o balanço desse CO2…”

Fact Mundi: É verdade que o óleo de fritura emite 90% menos gases de efeito estufa ?

Itânia: Um dos principais gases do efeito estufa emitidos na queima é o CO2. As pessoas, às vezes, pensam que um biocombustível não vai emitir CO2 e outros gases poluentes. Na verdade, com qualquer combustível que eu queime, eu vou emitir CO2. Não é só com a gasolina ou o diesel. Eu vou gerar CO2 do biodiesel, também. Não existe mágica. A questão é o balanço desse CO2, que no caso dos biocombustíveis, esse CO2 é capturado pela biomassa.

Fact Mundi: Então, qual é a vantagem de reciclar o óleo de fritura?

Itânia: A vantagem de utilizar os biocombustíveis como o biodiesel é que, diferentemente dos combustíveis fósseis, que levam milhares de anos para se formar, eles vêm de uma fonte renovável. O apelo do combustível renovável é que os vegetais que vão dar origem a esse combustível, a esse óleo, fazem a fixação desses gases. Então, eu estou capturando o CO2 de volta, na hora em que eu cultivo a planta. E a vantagem de utilizar o óleo de fritura na produção de biodiesel é que além de ter a possibilidade de utilizar uma matéria-prima mais barata eu estou gerando mais renda e estou tendo um ganho ambiental.

Fact Mundi: Outra vantagem é que o óleo de cozinha não tem enxofre. Qual é o óleo que tem enxofre?Itânia: O diesel é o que tem enxofre. Aqui no Brasil, existe o programa para a redução de enxofre, que é o S10. Significa que o óleo diesel deve ter no máximo 10 ppm (parte por milhão) de enxofre permitido. Como o óleo vegetal não tem enxofre, a matéria-prima do biodiesel também já teria essa outra vantagem. E não emitiria os compostos derivados do enxofre.

Fact Mundi: Qual é o melhor óleo vegetal para produzir o biodiesel?

Itânia: Bem, na produção do combustível, não importa qual o óleo vegetal que eu estou usando para produzir o biodiesel. Ele vai dar origem ao combustível biodiesel, que tem a sua regulamentação e precisa atender às normas bem rígidas. Então, não importa qual óleo de qual biomassa eu estou trabalhando, seja óleo de milho, de soja, de girassol, de algodão. A não ser alguns poucos óleos vegetais e a gordura bovina, que são ricos em cadeias saturadas. Nesse caso, pode haver problemas de solidificação do combustível. 

Fact Mundi: Voltando ao óleo de cozinha usado. Essa matéria-prima, apesar de ter um bom aproveitamento na indústria, tem uma presença de apenas 2% na fabricação do biodiesel. A soja é a principal matéria-prima do biodiesel brasileiro, com cerca de 71% na composição. Um internauta disse, uma vez: “O melhor mesmo seria parar de usar óleo para fritar.” É melhor mesmo? Deixar de usar o óleo para fritar seria um mundo ideal?

Itânia: (ela ri) Isso não vai acontecer. É a mesma coisa que falar com uma pessoa: “Não come açúcar.” Ela sabe que faz mal, mas vai comer. Com a fritura, é a mesma coisa. A fritura faz mal, mas eu não vou deixar de comer, não é?

Fact Mundi: Já que a fritura vai continuar existindo, você acha que existe um potencial de crescimento para o setor?

Itânia: Eu acredito que o óleo de fritura usado tem um potencial gigantesco, se for bem explorado. Não digo a utilização dele diretamente, claro, como já expliquei. Mas de expansão, como acontece em outros países como os Estados Unidos, por exemplo. Lá, não é só para o biodiesel. Tem crescido muito a utilização para a produção de diesel renovável. O potencial é gigantesco se bem explorado por veículos de mídia, para ter mais canais e um acesso maior à população. Fazer campanhas para descartar corretamente o óleo de cozinha e para sua reutilização como energia.

“Reciclando o óleo de fritura, você dá destino a alguma coisa que seria um passivo”, diz a pesquisadora.

Fact Mundi: Além disso, você concorda que outra vantagem de se utilizar o óleo de cozinha usado para fazer o biodiesel é que se deixa de usar a matéria-prima destinada ao alimento?

Itânia: Eu acho isso muito importante, porque reciclando o óleo de fritura, você dá destino a alguma coisa que seria um passivo. Ou seja, deixa de consumir aquele óleo que poderia ter uma aplicação mais nobre, que é a alimentação. Então, eu sou super favorável à reutilização para a produção de biocombustíveis. E acredito que isso deva crescer, num determinado momento.

Fact Mundi: Além de mim, de você e da nossa comunidade, é importante que o poder público participe e incentive a sociedade a buscar combustíveis mais limpos e a consumir com mais consciência?

Itânia: Sim. Se os governos incentivassem as pessoas a adotarem atitudes conscientes e de valorização dos recursos, haveria uma grande redução de custos e do impacto ambiental. Até com a possibilidade de ter um benefício, em troca. Por exemplo, a Embrapa e a Companhia de Saneamento de Brasília pensaram na viabilidade de dar um desconto na conta de água para quem descartasse corretamente o óleo de cozinha usado. A companhia de saneamento seria beneficiada, pois haveria uma redução da crosta nas tubulações, e os consumidores também sairiam ganhando. Mas não adianta trabalhar a conscientização sem ter outros incentivos do poder público.

Fact Mundi: O Fact Mundi até fez uma reportagem sobre a questão da coleta do óleo de fritura usado. Se houvesse mais conscientização e mais divulgação dessa prática, você acha que a indústria do biodiesel teria capacidade de absorção de um volume maior?

Itânia: Acredito que sim. Dependeria realmente de campanhas de conscientização e até da forma de coleta desse óleo, porque muitas vezes, o óleo recolhido é de qualidade muito ruim, nem dá para aproveitar. A população pode estar informada. Por exemplo, em casa, se eu tiver um óleo com muitos resíduos, eu já posso ter a consciência de separar a sujeira antes de entregar o material que será reutilizado. Mas a realidade é que falta informação e as pessoas acabam descartando de forma indevida na pia ou no lixo.

Fact Mundi: Você, que trabalha na Embrapa, empresa reconhecida por realizar pesquisas no setor agropecuário, acha que o Brasil está indo bem em termos de pesquisas relacionadas aos biocombustíveis?

Itânia: Olha, o Brasil está bem à frente, nessa questão. E na utilização de recursos renováveis, também, o país está bem acima da média. Tem um site bem bacana que dá todas essas informações, com dados de produção e uso de energia: o da Empresa Brasileira de Pesquisa Energética.

Fact Mundi: Itânia, muito obrigada pela entrevista.

Itânia: De nada, estou à disposição.

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